quinta-feira, 13 de março de 2014

Corpo pensamento: De repente tudo ficou preto de gente.




Um bando, uma tribo, um aglomerado. Insurreição e levante, dança de guerra, tropa de guerrilha, rito de celebração, bando em caça. O animal transformado em homem através da longa e esgarçada malha do tempo. Podem ser sem terra, judeus buscando a terra prometida ou sendo levados para as câmaras de gás, jagunços de Canudos ou cangaceiros do Sertão. Podem ser aborígenes, esquimós, nômades de um imenso deserto, tuaregues entre dunas escaldantes, marinheiros chacoalhados pelas quebras do mar. podem ser os 50 homens, as 50 mulheres e as 70 crianças Guarani-kaiowas, a tribo restante que se vê ameaçada perversamente por um governo que impõe seu jogo de poder sobre inocentes. Melhor que sejam os Guarani-kaiowas, já que nada mais resta a eles e qualquer tentativa de falar de ajuntamento – como raça, cultura e territorialidade encorpada – esbarra aí nessa chacina anunciada subjetivamente, em poderosa aplicação do que se pode chamar em biopolítica, de vida nua.[1] 


No artigo O corpo e suas paisagens de risco: dança/performance no Brasil, Christine Greiner (2009) traça um breve panorama do processo evolutivo da dança no país e de suas aproximações, desde a década de 70, com a performance. Ao fazer isso, ela aponta alguns momentos cruciais para o surgimento, no Brasil, da chamada dança contemporânea. Entre estes, a pesquisadora chama a atenção para as “mudanças de entendimento do corpo a partir dos cruzamentos entre os seus diferentes níveis de descrição e experimentação[2]”, a partir das quais este não é mais visto como um instrumento, em um dualismo mente/corpo[3], mas como um corpo pensante.  Ao discutir, por meio de sua prática artística, a noção de corpo pensante e da “percepção como ignição para o conhecimento[4]”, alguns criadores brasileiros, tais como Klauss Vianna, Angel Vianna e Denilto Gomes, alteraram os rumos da dança no país.
Nesse sentido, a coreografia, como sugere Susan Leigh Foster[5], pode ser considerada também como uma teoria.

Tais mudanças de natureza epistemológica têm questionado a própria natureza da dança e por isso não raramente são identificadas como o avesso de outras experiências já reconhecidas, causando estranhamento. Para definir estes novos modos de organização não é suficiente (nem desejável) emaranhar-se na teia das novas ou antigas nomeações a não ser quando, ao invés de mistificar ou criar regras estritas de codificação, estas possam ajudar a iluminar passagens pouco conhecidas  alimentando o caráter processual do corpo, reconhecendo-o como uma rede complexa e entrópica de informações capazes de aliar múltiplas imagens e conceitos ao mesmo tempo, ou seja: isso ocorre quando a própria coreografia constrói conexões teóricas e não quando se submete a elas. Este entendimento de coreografia não se restringe a uma coleção de passos já organizados previamente, mas a uma organização neuromuscular que dá visibilidade a um pensamento[6].

Estreitamente relacionado a essa questão, outro importante aspecto apontado pela autora diz respeito à aproximação, a partir dos anos 90, das relações (ou “alianças”) entre teoria e prática por meio tanto das investigações realizadas por artistas quanto por pesquisadores acadêmicos, propiciando a “construção de um pensamento crítico que passa a atravessar outros campos de conhecimento para pensar e fazer dança[7]” e que resulta nas primeiras publicações de autores brasileiros, frutos da realização de dissertações e teses no âmbito das universidades. Além disso, Greiner destaca a proliferação de cursos de graduação, grupos de estudo e festivais, que possibilitam o intercâmbio entre artistas brasileiros e estrangeiros.
É nesse panorama que se insere o pensamento artístico e a obra do coreógrafo, pesquisador e intérprete piauiense Marcelo Evelin que, na MITsp, apresenta a sua mais recente criação, De repente fica tudo preto de gente[8], enunciada pelo próprio artista na epígrafe que abre este artigo. O espetáculo parte de Massa e Poder (1960), talvez a obra mais importante do filósofo búlgaro Elias Canetti, na qual ele vai discutir a formação das massas e suas relações com o poder, além de um aspecto dessa formação, particularmente importante no processo de criação do trabalho, que diz respeito ao temor do contato e à consequente necessidade humana de adensamento, como forma de enfrentamento desse medo[9]. Afirma Evelin:

Canetti diz que temos muito medo de sermos tocados, e que só o perdemos quando estamos com os corpos absolutamente colados uns aos outros. Foi justamente essa proximidade, esse contato físico e corporal com o outro, que balizou toda a nossa pesquisa. (...) Tudo parte de uma vontade de eliminar as barreiras que nos separam, de juntar as diferenças num mesmo corpo. Pensar que todas as diferenças formam uma totalidade.
(...) Aconteceu o que o Canetti descreve: essa necessidade vital que temos de nos juntar, de unir as distinções. Ali eu vi pessoas de todas causas e cores unidas (...). Ele fala que buscamos a pretidão, que são os lugares mais escuros onde a gente se mistura e perde as cores. É aí que a gente vira um corpo junto, uma potência, esse preto de gente a que ele se refere[10].

Em cena, o coreógrafo coloca uma massa de corpos cobertos de fuligem, a se deslocar continuamente. Nesse movimento, a massa desloca outros corpos: aqueles dos espectadores. Nesse trabalho, como em outros do artista, a questão do tempo está presente: a duração do movimento, o gesto mínimo. Para Catherine Makereel:

Ao trabalhar sobre o conceito de massa, Marcelo Evelin permite a cada um a liberdade de imaginar, nesse corpo-a-corpo contagioso, evocações de revoltas, migrações, diásporas. (...) Os corpos se emaranham, se apertam, se amarram, e na medida em que nossos pensamentos escapam, divagam e dançam mais loucamente que os corpos de fuligem, quadros negros das nossas próprias imagens[11].

É interessante notar a noção de “contágio” ou de “contaminação” que perpassa os sentidos da obra, em sua concepção e em sua leitura. Tal noção é, segundo Greiner (2005) fundamental dentro das atuais discussões sobre o corpo, no que tange tanto à produção do pensamento como fluxo de imagens e em relação com as dinâmicas entre corpo e ambiente, quanto as implicações disso para uma dramaturgia do corpo.

Para pensar na dramaturgia de um corpo, há de se perceber um corpo a partir de suas mudanças de estado, nas contaminações incessantes entre o dentro e o fora (o corpo e o mundo), o real e o imaginado, o que se dá naquele momento e em estados anteriores (sempre imediatamente transformados), assim como durante as predições, o fluxo inestancável de imagens, oscilações e recategorizações[12].

Radicado na Europa desde 1986, Marcelo Evelin foi estagiário de Pina Bausch, em Wuppertal na Alemanha e, atualmente, vive entre Amsterdam-Holanda, onde, com sua companhia, Demolition Inc., dedica-se à pesquisa da dança/performance, colaborando com artistas de diversas linguagens; e sua cidade natal, Teresina, no Piauí, no qual, desde 2006, coordena o Núcleo do Dirceu.
Criado por Evelin durante sua gestão como diretor do Teatro Municipal João Paulo II, esse núcleo de criação funciona, hoje, como uma plataforma independente voltada à pesquisa e ao desenvolvimento das Artes Performáticas Contemporâneas, trabalhando, muitas vezes, em parceria com a companhia holandesa. Fruto desse intercâmbio, Matadouro (2010) é a terceira parte da trilogia iniciada com Sertão (2003) e seguida por BULL DANCING (2006). Para cada uma das obras, Marcelo Evelin trabalhou com uma parte do romance Sertões, de Euclides da Cunha: em Sertão, a terra; em BULL DANCING, o homem. E em Matadouro, a luta.

Tratar o corpo desses lutadores como um campo de forças ou um corpo sem órgãos, corpo-sujeito-objeto de uma luta sem desfecho. No vocabulário de Foucault, o filósofo francês distingue três tipos de luta (dominação, exploração, sujeição) e escolhemos a terceira delas para conduzir a luta desse Matadouro: “a luta contra as formas de sujeição que vinculam o sujeito consigo mesmo e, desse modo, asseguram a sujeição aos outros”. Foucault segue esclarecendo e trazendo essa ideia de luta para a luz da atualidade, na proximidade com o que vivemos no mundo de hoje: “... é a luta contra as formas de sujeição, contra a submissão da subjetividade, a que prevalece cada vez mais, ainda que não hajam desaparecido as lutas contra a dominação e a exploração, pelo contrário”.[13]

Em cena, 8 intérpretes mascarados, entre bailarinos e músicos, empreendem uma corrida sem fim, em que os corpos se configuram como uma massa sem muitas distinções. Subitamente se instala um gesto, um movimento, um modo. Para, em seguida, se misturar novamente à massa de corpos que correm exaustivamente. As máscaras, mais do que singularizar, retiram toda identidade dos corpos. Aqui, podemos perceber a questão que Agamben coloca sobre o gesto como um meio sem finalidade, pura medialidade:

Do mesmo modo, compreendendo-se por palavra o meio da comunicação, mostrar uma palavra não significa dispor de um plano mais elevado (uma metalinguagem, esta mesma incomunicável no interior do primeiro nível), a partir do qual se faz dela objeto da comunicação, mas expô-la sem nenhuma transcendência na sua própria medialidade, no seu próprio ser meio. O gesto é, neste sentido, comunicação de uma comunicabilidade. Este não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem como pura medialidade. Mas, assim como o ser-na-linguagem não é algo que possa ser dito em proposições, o gesto é, na sua essência, sempre gesto de não se entender na linguagem, é sempre gag no significado próprio do termo, que indica, antes de tudo, algo que se coloca na boca para impedir a palavra, e também a improvisação do ator para superar uma falha de memória ou uma impossibilidade de falar[14].

A aproximação desse trabalho com a performance é inegável: a metáfora do corpo matável[15], do qual parte o trabalho, está expressa na exposição de um corpo submetido aos limites da resistência física e mental, envolvido em uma luta em que se debatem o humano e o inumano, em que se “relativiza os sentidos de política e ritual, anarquismo e ativismo, construção e desconstrução”.
Em MONO (2008), instalação coreográfica criada por Marcelo Evelin/Demolition Inc. e Núcleo do Dirceu, temos três espaços distintos que são ocupados por um “homem se debate em uma chapa aquecida por luz com o corpo besuntado de banha de porco”, um “homem [que] faz movimentos leves e acrobáticos em um espaço iluminado por luz negra”  e um “homem [que] brinca com 50 bonecas de plástico as organizando em situações comuns que se referem à dança, à família, à vida dos seres humanos no mundo e na sociedade”[16]. Criado em colaboração com Jacob Alves e Cipó Alvarenga, que também assinam a criação e performance, o espetáculo tem concepção, direção e performance de Marcelo Evelin e, dele, emergem tanto a questão do esgarçamento do tempo como o questionamento constante que o pesquisador vem realizando, em seus trabalhos, do que seja um “espetáculo de dança, ou o que caracteriza uma obra: a relação de passos e mais passos a serem apresentados, a colocação de um linóleo para bailarinos dançarem ao ar livre, mesmo que fora de um teatro?” (ALBUQUERQUE, 2010: 29).

Mono propõe ao espectador três espaços distintos e isolados, ocupado por três homens engajados em uma ação contínua, que se mantêm como suspensão ou insistência no decorrer de duas horas. O público pode entrar e sair a qualquer hora, e pode escolher a sequência de como e por quanto tempo ver cada ação. A obra propõe assim, uma reorganização do lugar e do olhar do espectador, dando a ele a possibilidade de um entendimento próprio.
O que existe em comum entre esses três artistas instalados é a ausência de música e a exposição do corpo nu. Corpo simplesmente despido de sua aparência social, despojado de qualquer noção estética e de qualquer possibilidade de eroticismo. Três corpos dispensados, demitidos da função de “fazer e mostrar” comumente aplicado na dança, para se fazer presente como ação de “ser e estar”. Três corpos sem identidade fixa, sem classificação ou referência, apenas como materialidade e desejo de “presentificação” nessa atemporalidade oscilante. Daí a opção quase que inevitável de mostrá-los nus[17].

Vários dos aspectos apontados aqui – como o redimensionamento do lugar (e do olhar) do espectador e a desconstrução da noção de ação como algo a se fazer (e mostrar) por uma percepção desta como estado corporal (ser/estar) – em relação a MONO, vão aparecer também nos elementos da pesquisa desenvolvida pelo Núcleo do Dirceu (2011/ 2012), dentro do projeto 1000 Casas, conjunto de ações performáticas realizadas na região do Grande Dirceu, em Teresina e que consistiu em intervenções domiciliares.

[O projeto] surgiu da necessidade de conhecer o lugar Dirceu e as pessoas daquele lugar. Eu confesso que sentia o desejo de ser convidado pelas pessoas para ir as suas casas, um hábito que na Europa significa mais do que uma visita corriqueira, vem a significar um licenciamento, uma atribuição de direito sobre certa privacidade, o acesso permitido a uma pessoalidade. (...)
Apesar de pensar no estranhamento e no impacto que tal ação poderia causar no cidadão recebendo isso em sua casa, eu me interessei sempre pelo impacto que isso iria causar no artista criador e/ou performador, e como esse usaria a sua “caixa de ferramentas” e seu “sistema de percepção” nessa nova condição de criação e performance.
|1| Como o artista poderia transitar nessa zona fronteiriça, constantemente adequando o corpo e a ação a um outro contexto performático?
|2| Como as ações seriam concebidas e desenvolvidas sem um conhecimento prévio do lugar performático?
|3|O que se pode produzir e oferecer como questão artística na sala, cozinha ou quintal da casa de uma família?
|4| Como se pode exercitar uma condição performática desvinculada de padrões de representação e/ou execução e deslocada do seu lugar-comum, mas que ainda opere como performatividade?
O projeto 1000 casas propõem um esquadrinhamento dessa fronteira Público |X| Privado pela ação de convívio direto: como um embate, um corpo a corpo, um assalto, um furacão, um vento que possa sacudir a poeira, mudar os móveis de lugar e quem sabe ativar de novo o possível em nós[18].

Ao considerar a dança como pensamento do corpo (KATZ, 2010), artistas como Marcelo Evelin colocam em questão as conexões entre corpo e mundo, teoria e prática e discutem, inclusive, os limites e lugar de sua arte, borrando as fronteiras entre o público e o privado e potencializando as imbricações entre estética e política.




Referências
AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. In: Revista ArteFilosofia. Ouro Preto: Instituto de Filosofia, Artes e Cultura/Universidade Federal de Ouro Preto, n.4, (jan.2008).
ALBUQUERQUE, Iara Cerqueira Linhares. Estratégias coreográficas no processo artístico de Marcelo Evelin. Dissertação (Mestrado em Dança). Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, 2010.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
GREINER, Christine. O corpo e suas paisagens de risco: dança/performance no Brasil. In: Revista ArteFilosofia. Ouro Preto: Instituto de Filosofia, Artes e Cultura/Universidade Federal de Ouro Preto, n.7, (out.2009).
_________________. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
KATZ, Helena. Um, Dois, Três: a dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2010.


Sites Consultados







[1]EVELIN, Marcelo. Programa de Mão. Disponível em http://www.nucleododirceu.com.br/programa-de-mao/. Acesso em 04/02/2014.
[2] GREINER, 2009:184.
[3] Do mesmo modo que entre cultura e natureza, ou ainda entre teoria e prática.
[4] GREINER, 2009: 183.
[5] FOSTER (1998) apud GREINER, 2009: 180.
[6] GREINER, 2009: 181.
[7] GREINER, 2009: 184.
[8] Criação de Marcelo Evelin/Demolition Inc. (Amsterdam/Holanda), para performers de diversas partes do mundo: Teresina, Ipatinga, Kyoto, São Paulo e Amsterdam.
[9] Canetti (1995) chama atenção, ainda, para outra questão: “Na multidão, o indivíduo não tem rosto e ganha coragem para projetar suas frustrações e ressentimentos. O próprio indivíduo tem a sensação de que, na massa, ele ultrapassa as fronteiras de sua pessoa”. Esse aspecto “fascista” das massas pode ser observado no recente caso, ocorrido no Rio de Janeiro, do grupo de moradores do Flamengo que espancou e amarrou a um poste, um suposto assaltante das redondezas, negro e menor de idade.
[10] Marcelo Evelin, em entrevista concedida a Luiz Felipe Reis, está se referindo, aqui, a um trecho bastante conhecido da obra do filósofo: “A massa é uma aparição tão enigmática quanto universal que, de repente, está lá onde antes nada havia. Algumas poucas pessoas podem ter estado reunidas, cinco ou dez ou doze, não mais. Nada foi anunciado, nada esperado. De repente, tudo ficou preto de gente” (CANETTI apud EVELIN). Disponível em http://oglobo.globo.com/cultura/diferencas-que-se-desfazem-no-encontro-dos-corpos-9868100. Acesso em 04/02/2014.
[12] GREINER, 2005: 81.
[13] EVELIN, Marcelo. Matadouro: final cut.
Disponível em:  http://www.nucleododirceu.com.br/matadouro-final-cut/. Acesso em 04/02/2014.
[14] AGAMBEN, 2008: 13-14.
[15] -“Corpo alheio, corpo cera, corpo sem corpo, corpo matável, corpo estranho, corpo suicida, corpo pacote, corpo dormente, corpo sem ar, corpo murcho”;
-“Corpos entre significação e sentido”;
-“Corpos que lutam em suas lutas silenciosas, veladas, lutas que escapam ao controle ou ao querer, lutas que são travadas no, com e pelo corpo”;
-“Corpo que não resiste mais, corpo sem olho, cabeça, mão... (EVELIN apud ALBUQUERQUE, 2010: 29).
[16] EVELIN, Marcelo. Mono Cancelado. Disponível em: http://www.nucleododirceu.com.br/mono-cancelado/. Acesso em 04/02/2014.
[17] EVELIN, Marcelo. Mono Cancelado. Disponível em: http://www.nucleododirceu.com.br/mono-cancelado/. Acesso em 04/02/2014.
[18] Disponível em http://www.nucleododirceu.com.br/1000-diferentes-casas/ . Acesso em: 04/02/2014.