sexta-feira, 22 de março de 2013


Ensaios sobre a ausência: Duas experiências – O Projeto Voyzeck e Um noturno para o chá das cinco.

Fotografia é o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência? (Clarice Lispector)

Dois espetáculos presentes na programação do CORPOLÍTICO, esses trabalhos envolveram a presença de professores e alunos do curso de artes cênicas da UFOP e refletem as investigações atuais desenvolvidas no Departamento de Artes sobre questões da cena contemporânea.  A presença do corpo e relações decorrentes com novas interações com novas tecnologias e mídias artísticas tornam-se pontos fulcrais na produção de significados cênicos, e conduzem o olhar espectador a novas dimensões, físicas e virtuais, de diálogo com elementos tradicionalmente identificados como construtores da natureza cênica, a saber, o espaço, a luz, o texto, o ator e a cenografia. Opta-se, nesse texto, por abordar esses espetáculos como exemplos dialógicos e concernentes às discussões encaminhadas durante todo o evento, onde imbricações estéticas e políticas nortearam as múltiplas reflexões e vozes que se manifestaram durante os debates e mesas redondas, devido às características que vamos, a seguir, tentar refletir.
Em Projeto Voyzeck, percebe-se, desde o início a dicotomia do discurso: os atores não estão lá. Lá, digamos, diante do público, como se espera de uma montagem teatral. Concebido a partir de dois espaços de interação, um estúdio e uma sala de apresentação, a relação dos espectadores, dispostos em uma relação aparentemente tradicional de frontalidade entre palco-plateia,  provoca uma sensação de descompasso inicial quando se percebe que os atores não estão presentes, mas se apresentam projetados sobre uma parede branca. Após um estranhamento inicial, a montagem se estabelece em um lugar entre cinema, instalação e performance, devido às interações da música de uma bateria tocada ao vivo, atores que entram e saem da sala e dialogam com as imagens projetadas, e sons que se escutam em uma sala ao lado. O espetáculo nos convida a sair pela porta de acesso que permanece aberta o tempo todo, causando curiosidade quando se percebe que algo acontece em outro lugar, que não se tem acesso diretamente através das imagens na tela. Nesse sentido, um outro jogo se instala:  a curiosidade de apreender o todo, saber o que acontece no outro ambiente, relacionar através da experiência do espectador esses vários elementos que evoluem em fragmentos, indícios, rasuras e vestígios de informações, mediadas pelo vídeo, virtualidade e ausência simultâneas. Identificando-se essas questões potenciais, o deslocamento de espaço apresenta-se, ao mesmo tempo, como uma transgressão e uma possibilidade, ambos os elementos caracterizando o jogo interativo entre o espectador e a cena. Na outra sala, a surpresa: um estúdio, como de TV, está instalado, onde os atores interpretam diante da câmera. Algo de voyeurístico e de proibido, a invasão do espaço de gravação, onde o diretor/técnico fornece instruções aos atores e a cena gravada é exibida em tempo real na outra sala. Está então, estabelecida claramente a regra do jogo: o espectador busca algo que já se foi, o acontecido, mesmo em tempo real, nunca totalmente apreendido; Em um espaço, o corpo midiatizado, torna-se artificialmente construído como uma referência passada, ausente, como imagem projetada, artificialmente instaurada em um virtual espaço-tempo de experiência. Na outra sala, o silêncio do estúdio, o corpo físico presente e desconstruído do sentido da experiência do aqui e agora, catapultado para a possibilidade do vir a ser, reconfigurado pelo olho da câmera. Entre esse universo de possibilidades situa-se a experiência do espectador, reconstruindo as informações, deslocando-se pelos espaços, reunindo os fragmentos da cena, dos corpos, do personagem Voyzeck estilhaçado em presente e passado, simultaneamente reinventado. 
Em Um noturno para o chá das cinco, instaura-se o espaço da exposição. Exposição em todos os sentidos: do universo dos performers, dos objetos cênicos, da música ambiente, dos vídeos projetados por todo o espaço. O aparente caos, como jogo interativo, conduz os espectadores a pequenos, múltiplos e continuamente reordenados lugares de experiência. Desenvolvem-se, então, fragmentadas memórias, lugares de afectos e perceptos, no dizer deleuziano, esgarçadas dramaturgias cotidianas, individuais e coletivas, numa constante busca do não dito, não expresso, não comunicado. O tempo é contínuo e ao mesmo tempo incompleto; o espetáculo não se configura como espetáculo no sentido de decorrer no tempo e espaço dramático convencional. Ele não acontece – ele está. Neste sentido, quando termina (é interrompido) não acaba realmente, é só o tempo que a sala de exposição (a galeria) necessita para interromper seu horário de funcionamento diário. Instalado no tempo da memória do espectador, ele permanece. A ausência, protagonista oculta do discurso cênico, amplia sua dimensão, quando os pequenos fragmentos de vida nunca totalmente conhecidos e reagrupados, marcam o sentido teatral da primeira. O presente nunca está lá; os vídeos, projetados sobre telas e corpos, os textos dos atores, tudo isso reflete a memória, vivida ou imaginada, em flashes de vivências possíveis, subjetividades dialógicas e a busca do outro, real ou desconhecido. 
A presença concreta e atuante dos artistas que normalmente permanecem ocultos em uma montagem de teatro, nesse caso, o iluminador e o dramaturgo, reforça a sensação de exposição de arte e vai além. Pressupondo-se a dimensão de laboratório de criação, pode-se acompanhar a atividade desses criadores em processo direto de experiência, manipulando suas ferramentas de criação cênica, refletores, projetores, textos espalhados pelo chão. A atitude contemplativa estabelece um estranhamento da própria realidade cênica, ao mesmo tempo conferindo teatralidade ao jogo proposto pela encenação.
Para concluir, essa duas experiências reafirmam o lugar incômodo e ao mesmo tempo potente da cena contemporânea, em que os sentidos de tempo, presença, corpo, virtual e real se reconfiguram como possibilidades de criação, potencializando o elemento da teatralidade, encarando a desagregação e a ruptura da linguagem como matéria prima, desafio da sala de ensaio, do encenador e do ator em diálogo com o espectador, jogo de ausências/presenças, sempre reinventado, às vezes em consonância e em outras vezes em conflito, mas sempre em busca de novas possibilidades de discurso cênico.

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