Ensaios sobre a ausência: Duas experiências – O Projeto Voyzeck
e Um noturno para o chá das cinco.
Fotografia é o retrato
de um côncavo, de uma falta, de uma ausência? (Clarice Lispector)
Dois espetáculos presentes na
programação do CORPOLÍTICO, esses trabalhos envolveram a presença de
professores e alunos do curso de artes cênicas da UFOP e refletem as
investigações atuais desenvolvidas no Departamento de Artes sobre questões da
cena contemporânea. A presença do corpo
e relações decorrentes com novas interações com novas tecnologias e mídias
artísticas tornam-se pontos fulcrais na produção de significados cênicos, e
conduzem o olhar espectador a novas dimensões, físicas e virtuais, de diálogo
com elementos tradicionalmente identificados como construtores da natureza
cênica, a saber, o espaço, a luz, o texto, o ator e a cenografia. Opta-se,
nesse texto, por abordar esses espetáculos como exemplos dialógicos e
concernentes às discussões encaminhadas durante todo o evento, onde imbricações
estéticas e políticas nortearam as múltiplas reflexões e vozes que se
manifestaram durante os debates e mesas redondas, devido às características que
vamos, a seguir, tentar refletir.
Em Projeto Voyzeck, percebe-se, desde o início a dicotomia do
discurso: os atores não estão lá. Lá, digamos, diante do público, como se
espera de uma montagem teatral. Concebido a partir de dois espaços de
interação, um estúdio e uma sala de apresentação, a relação dos espectadores,
dispostos em uma relação aparentemente tradicional de frontalidade entre
palco-plateia, provoca uma sensação de
descompasso inicial quando se percebe que os atores não estão presentes, mas se
apresentam projetados sobre uma parede branca. Após um estranhamento inicial, a
montagem se estabelece em um lugar entre cinema, instalação e performance, devido às interações da
música de uma bateria tocada ao vivo, atores que entram e saem da sala e
dialogam com as imagens projetadas, e sons que se escutam em uma sala ao lado.
O espetáculo nos convida a sair pela porta de acesso que permanece aberta o
tempo todo, causando curiosidade quando se percebe que algo acontece em outro
lugar, que não se tem acesso diretamente através das imagens na tela. Nesse
sentido, um outro jogo se instala: a
curiosidade de apreender o todo, saber o que acontece no outro ambiente,
relacionar através da experiência do espectador esses vários elementos que
evoluem em fragmentos, indícios, rasuras e vestígios de informações, mediadas
pelo vídeo, virtualidade e ausência simultâneas. Identificando-se essas
questões potenciais, o deslocamento de espaço apresenta-se, ao mesmo tempo,
como uma transgressão e uma possibilidade, ambos os elementos caracterizando o
jogo interativo entre o espectador e a cena. Na outra sala, a surpresa: um
estúdio, como de TV, está instalado, onde os atores interpretam diante da câmera.
Algo de voyeurístico e de proibido, a invasão do espaço de gravação, onde o
diretor/técnico fornece instruções aos atores e a cena gravada é exibida em
tempo real na outra sala. Está então, estabelecida claramente a regra do jogo:
o espectador busca algo que já se foi, o acontecido, mesmo em tempo real, nunca
totalmente apreendido; Em um espaço, o corpo midiatizado, torna-se artificialmente
construído como uma referência passada, ausente, como imagem projetada, artificialmente
instaurada em um virtual espaço-tempo de experiência. Na outra sala, o silêncio
do estúdio, o corpo físico presente e desconstruído do sentido da experiência
do aqui e agora, catapultado para a possibilidade do vir a ser, reconfigurado
pelo olho da câmera. Entre esse universo de possibilidades situa-se a
experiência do espectador, reconstruindo as informações, deslocando-se pelos
espaços, reunindo os fragmentos da cena, dos corpos, do personagem Voyzeck
estilhaçado em presente e passado, simultaneamente reinventado.
Em Um noturno para o chá das cinco, instaura-se o espaço da exposição. Exposição em todos os
sentidos: do universo dos performers, dos objetos cênicos, da música ambiente,
dos vídeos projetados por todo o espaço. O aparente caos, como jogo interativo,
conduz os espectadores a pequenos, múltiplos e continuamente reordenados
lugares de experiência. Desenvolvem-se, então, fragmentadas memórias, lugares
de afectos e perceptos, no dizer deleuziano, esgarçadas dramaturgias cotidianas,
individuais e coletivas, numa constante busca do não dito, não expresso, não
comunicado. O tempo é contínuo e ao mesmo tempo incompleto; o espetáculo não se configura como espetáculo
no sentido de decorrer no tempo e espaço dramático convencional. Ele não acontece – ele está.
Neste sentido, quando termina (é interrompido) não acaba realmente, é só o tempo
que a sala de exposição (a galeria) necessita para interromper seu horário de funcionamento
diário. Instalado no tempo da memória do espectador, ele permanece. A ausência,
protagonista oculta do discurso cênico, amplia sua dimensão, quando os pequenos
fragmentos de vida nunca totalmente conhecidos e reagrupados, marcam o sentido
teatral da primeira. O presente nunca está lá; os vídeos, projetados sobre
telas e corpos, os textos dos atores, tudo isso reflete a memória, vivida ou
imaginada, em flashes de vivências possíveis, subjetividades dialógicas e a
busca do outro, real ou desconhecido.
A presença concreta e atuante dos
artistas que normalmente permanecem ocultos em uma montagem de teatro, nesse
caso, o iluminador e o dramaturgo, reforça a sensação de exposição de arte e
vai além. Pressupondo-se a dimensão de laboratório de criação, pode-se acompanhar
a atividade desses criadores em processo direto de experiência, manipulando
suas ferramentas de criação cênica, refletores, projetores, textos espalhados
pelo chão. A atitude contemplativa estabelece um estranhamento da própria
realidade cênica, ao mesmo tempo conferindo teatralidade ao jogo proposto pela
encenação.
Para concluir, essa duas
experiências reafirmam o lugar incômodo e ao mesmo tempo potente da cena
contemporânea, em que os sentidos de tempo, presença, corpo, virtual e real se
reconfiguram como possibilidades de criação, potencializando o elemento da
teatralidade, encarando a desagregação e a ruptura da linguagem como matéria
prima, desafio da sala de ensaio, do encenador e do ator em diálogo com o
espectador, jogo de ausências/presenças, sempre reinventado, às vezes em
consonância e em outras vezes em conflito, mas sempre em busca de novas possibilidades
de discurso cênico.
Parabéns, bjs!
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